27 de julho de 2008

Montanha-russa

Acordou naquele dia com uma vontade particular de arrumar suas coisas.
Tirou velhas fotografias do álbum, recolheu seus diários de adolescente, e cartas de amores passados.
Achou graça nos seus pensamentos de quando tinha doze anos. Achava-se a criatura mais madura da terra. Quando na verdade era apenas uma criança, uma criança buscando sua identidade, sua liberdade, ah , a idéia utópica da liberdade talvez só exista mesmo na imaginação de uma criança.
Achou por bem abrir uma garrafa daquela cachaça mineira, trazia por seu tio, o especialista na manguaça.
Vendo suas fotos com sorrisos felizes, amigos não mais presentes, roupas que beiram o ridículo, crianças que nos dias de hoje, são homens formados,mulheres da vida.
Momentos felizes. E ri dessas lembranças gostosas,como se as vivesse novamente.
E nas cartas, da-se também o prazer de chorar, o choro gostoso, de bons momentos, dos momentos difíceis, das viagens, dos amores verdadeiros, das intrigas ... Costumava ser excitante.
E juntando todos os pormenores de sua existência concreta, fez uma fogueira no meio do apartamento. Assim. Pegou aquela lata de lixo que fica no canto da cozinha, tacou a cachaça, e jogou o fósforo.
A cada pedaço queimado parecia então queimar um pouco do que fora.
Estranho, parecia sentir-se mais feliz com aquilo tudo.
E ria também por precisar de tudo aquilo para ter lembrança de bons momentos.
E estranho, sentia-se um pouco mais liberta.
Resolveu que não seria ali. Saiu do apartamento, subindo as escadas trôpegas.
Lembrou-se da primeira vez que andou de montanha-russa. Era a mesma sensação, a subida, a hora em que todos querem desistir, sentiu que iria vomitar de nervoso, mas segurou, vai passar, vai passar.
A placa dizia "Proibida a passagem de pessoas não autorizadas" como se pudessem evitar que ela passasse por ai.
Ventava. Havia um sol das 10 da manhã, aquele que é tão gostoso de sentir na pele, um prazer sensual, que a fez lembrar que havia algum tempo que não tomava sol.
Sentou na beiradinha do edifício, com sua garrafa de lembranças, que agora parecia descer amarga, como naquela noite em que fez loucuras por um amor inválido. Só para esquecer.
Mas não, não eram essas lembranças que ela quer ter, no topo da subida da montanha russa.
Segurou no braço de sua mãe, e fechou os olhos.
Dessa vez, iria com os olhos abertos.
E olhou para baixou uma vez, e reparou uma certa movimentação. Talvez, por ela não ser autorizada a estar lá. Talvez porque seu apartamento estava sendo tomado por chamas.
Não se arrepende.
E sorri.
Está, como não estava a muito tempo, numa felicidade que não se aguentava.
E viu o começo da descida. E resolver ficar de pé, levantou as mãos.
"Dessa vez, é de olho aberto". Deixou o peso, agora cheio de vida, curioso por saber a sensação.
Foi um salto incrível!
Que vento agradável! Um velocidade espetacular. Nunca havia se sentido assim.
Mais uma vez a montanha-russa. Aquele frio na barriga, aquela vontade de acabar logo! Um quase arrependimento! Mas não! Jamais! Aproveita cada minuto da sua... É isso! Da sua liberdade! Estás liberta! Chega a correr uma lágrima, talvez de sentimento, talvez por conta do vento.
E então sente o peso da sua liberdade, esmagando-lhe os ossos contra o chão duro, para desespero dos que a observavam.
E sairam notícias no jornal, e não se comentava outra coisa no bairro.
Ela simplesmente não ligaria. Descansaria em paz. Com sua liberdade. Que durou apenas alguns segundos. Mas que valeu a pena por toda vida.

3 comentários:

Anônimo disse...

É uma espécie de post de despedida ????
Sai dessa!!!!

Mieko disse...

cárcere mesmo é a consciência, talvez isso seja realmente a liberdade.
curti o post. mto bom!

Anônimo disse...

Algumas coisas tem gosto estranhos e amargos, mas há sempre outro ângulos para se olhar cada coisa...

Esse post, no início, me deu a mesma sensação de quando ouvi, num momento não muito legal, a música "Como nossos pais" de Belchior por Elis...

Certa, confusa e fuga...

Perdoe-me ser intruso, mas também procuro uma fuga...

sensoincomum.wordpress.com